Para compreender todo o desígnio do Filho de Deus na Eucaristia, cumpre escutar o que Ele diz dela em São João.
Acharemos que Ele faz aí três coisas. Primeiramente explica-nos o que nos dá; segundo, o fruto que devemos tirar dela; terceiro, o meio de tirar dela esse fruto.
O que Ele nos dá é à Si próprio, e é Sua carne e Seu sangue; e mal Ele fala disso, os homens exclamam: "Como é que este homem pode dar-nos sua carne a comer"?
O homem argumenta sempre contra si próprio e contra as bondades de Deus.
Quando Jesus, para preparar-nos para o mistério que Ele devia deixar à Sua Igreja no dia da ceia, disse que nos daria Sua carne a comer e Seu sangue a beber, e os Judeus caíram em três erros:
Acreditaram que Ele lhes falava da carne de um puro homem, do filho de José, eis o seu primeiro erro; duma carne semelhante àquela com que os homens alimentam o corpo,
eis o segundo; duma carne, enfim, que eles consumiriam comendo-a, eis o terceiro.
Contra o primeiro:
"Eu sou, diz Ele, o pão vivo descido do céu".
A carne que comemos não é, pois a carne do filho de José; é a carne do Filho de Deus, uma carne concebida do Espírito Santo, e formada do sangue duma virgem.
"O Espírito Santo virá sobre vós, e a virtude do Altíssimo vos cobrirá com Sua sombra; e a coisa santa que nascerá de vós terá o nome do Filho de Deus" (Lc 1, 25)
Porque Sua pessoa é Santa por Si mesma, pela santidade essencial e substancial do Filho de Deus.
"E eis porque, continua o anjo, Ele será chamado Filho de Deus".
Que quer dizer Ele será chamado? É que Ele não o será essencialmente, e que Lhe darão esse nome por alguma figura?
Livre-nos Deus! Pelo contrário, Ele o será chamado por excelência. O Pai, que O gera na eternidade gerá-lo-á no seio de Maria, a virtude do Altíssimo cobri-la-á da Sua sombra, insinuar-se-lhe-á no seio, e a carne que o Filho de Deus tomará no seio dessa Virgem
será formada pelo Espírito Santo. Será, pois, uma carne santa, da santidade do Filho de Deus, que a une a si; será cheia de vida, fonte de vida, viva e vivificante por si mesma.
Assim o primeiro erro é destruído.
Para refutar o segundo, que consistia em imaginar que a vida, que Jesus Cristo prometia por Sua carne seria essa vida comum e mortal. Ele repete, inculca, em todo o Seu discurso, que é a vida eterna, tanto da alma quanto do corpo, que Ele nos quer dar:
"A vontade de meu Pai é que não perca nenhum daqueles que Ele me deu, e que os ressuscite no último dia. Quem comer deste pão, desta vianda celeste, da minha carne, que eu darei pela vida do mundo, viverá eternamente" (Jo 6, 30ss).
Para destruir o terceiro erro dos Judeus que imaginavam uma carne que consumiríamos comendo-a, diz-lhes Ele:
"Isto vos escandaliza? Muito mais admirados ficareis então quando virdes o Filho do homem subir ao lugar donde veio".
Como se dissesse: Comerão a minha carne, disse-o eu; mas nem por isto ficarei menos vivo e menos inteiro. Donde Ele conclui:
Não imagineis, pois, que eu vos fale de uma carne humana comum, ou da carne do filho de José; nem que vos fale duma carne que vos deva ser dada para manter essa vida mortal, nem, por conseguinte, duma carne que deva ser posta em pedaços e consumida comendo-a:
"A carne, nesses sentidos, de nada serve; é o espírito que vivifica; as palavras que eu vos digo são espirito e vida".
Posto que só tenha falado, por assim dizer, da Sua carne, do Seu sangue; de comer aquela, de beber este, tudo o que Ele disse é espirito; quer dizer manifestamente que na Sua carne, no Seu sangue, tudo é espírito, tudo é vida, tudo está unido à vida e ao
espirito; porque Sua carne e Seu sangue são a carne e o sangue do Filho de Deus.
Tanto, pois, quanto desejamos a vida, devemos desejar essa carne que no-la dá, que a contém, que é a própria vida.
"Saiu de mim uma virtude; senti-a sair".
Era uma virtude para curar os corpos: quantas mais sairão para vivificar as almas? Aproximemo-nos, pois, dessa carne, toquemo-la, comamo-la: sairá dela uma virtude que trará a vida às nossas almas, e que a seu tempo a dará aos nossos corpos.
O mesmo sucede com o sangue de Jesus; esse sangue é cheio de virtude para nos vivificar; pois é o sangue do Filho de Deus, o sangue do Novo Testamento, como o chama Ele próprio; e quer dizer, como o interpreta São Paulo, "o sangue do Testamento
eterno, pelo qual o grande pastor das ovelhas foi torado da morte".
Ele próprio ressuscitou, pois, dos mortos pela virtude de Seu sangue, porque devia entrar na glória pelos Seus sofrimentos. É por esse mesmo sangue, por esse sangue do Testamento e da Aliança eterna, que devemos também herdar o Seu reino e ter a vida eterna.
"A Eucaristia" de Jacques Bossuet
Comments