O trabalho criador exige ainda outras virtudes. Reúno aqui três das suas exigências que mutuamente se corroboram, para que uma obra não seja curta nem indigente. Precisamos de trabalhar com constância, com paciência, com perseverança. A constância mantém-se a pé firme, a paciência suporta as dificuldades, a perseverança evita o gasto da vontade.
«Não se julgue fácil a vida de estudo», escreve Nicole... Porque nada contraria tanto a natureza como a uniformidade e o repouso, porque nenhuma outra coisa nos oferece maior ensejo de viver connosco. A mudança e as ocupações exteriores levam-nos para fora de nós e divertem-nos, fazendo-nos esquecer a nós próprios. Além disso, a linguagem das palavras é sempre um pouco morta, não excita vivamente o amor-próprio, nem desperta as paixões. É destituída de ação e de movimento... Fala-nos pouco de nós e dá-nos poucas vezes a ocasião de nos vermos com prazer. Lisonjeia pouco as nossas esperanças, e tudo isto contribui para mortificar enormemente o amor-próprio que, não estando satisfeito, derrama a preguiça e o tédio sobre todas as ações.
Esta análise, que relembra a teoria do Divertimento de Pascal levar-nos-ia longe. Dela retenho apenas a necessidade de pensar em vencer «a preguiça é o tédio» que são dois inimigos temíveis.
Quem não conhece os intelectuais que trabalham às arremetidas, por fases entrecortadas de preguiça e de negligência? Há rasgões no estofo do seu destino, esse destino que eles transformam em rodilha cheia de remendos, quando deveria ser preciosa tapeçaria. Nós queremos ser intelectuais todo o tempo e queremos que isso conste. Damo-nos a conhecer pela maneira como repousamos e nos distraímos, pela maneira como atamos os sapatos: com muito maior razão se verá quem somos pela fidelidade ao trabalho ou seja pela pontualidade em retomar a nossa tarefa.
Pediram um dia a Edison que dissesse a uma criança alguma palavra que lhe ficasse gravada. O grande inventor, sorrindo, disse: «Meu menino, nunca olhes para o relógio». Edison olhava tão pouco para ele que, no dia do casamento - um casamento de amor - foi necessário ir procurá-lo, tão embebido estava nas suas investigações.
É belo viver só para aquilo que se está fazendo, como Deus que nunca se separa da Sua obra. E se a ocupação não vale a pessoa, não há porque nos aplicarmos a ela.
Muito amiúde somos tentados a perder tempo, porque «não vale a pena pôr ombros à empresa», porque «está quase a ser hora». Não refletimos que estes bocados de duração, que de facto se adaptam mal a uma empresa, estão naturalmente indicados para preparar o
trabalho ou para lhe der um retoque, para verificar referências, tirar notas, classificar documentos, etc. O tempo assim aproveitado é tempo que se forra para as verdadeiras sessões laboriosas, e os instantes assim empregados são tão úteis como os outros, porque estas pequeninas tarefas dizem-lhes respeito e são indispensáveis.
Durante as horas de trabalho intenso, assalta-nos a tentação de interromper o esforço, desde que o menor incidente traz a «languidez» e provoca o «tédio» de que fala Nicole. A preguiça é muito manhosa, exatamente como as crianças. Enquanto buscamos uma palavra que nos não acode, entretemo-nos a desenhar bonecos, e forçosamente o boneco terá de ser concluído.
Quando abrimos o dicionário, atrai-nos uma curiosidade verbal, depois outra, e lá ficamos presos como numa sarça. Caem-nos os olhos sobre um objeto, vamos ordená-lo e um útil entusiasmo nos retém durante um quarto de hora. Alguém passa na rua; um amigo está na sala vizinha; o telefone tenta os nossos lábios... ou então é o jornal que chega, cravais nele o olhar e bem depressa vos distrais. Ideia puxa ideia, e pode suceder que o próprio trabalho vos afaste do trabalho, pelo facto de vos deixardes arrastar para as perspetivas abertas diante do espírito por um devaneio acaso provocado por algum pensamento.
Nos momentos de inspiração, estas armadilhas não oferecem grande perigo, porque a alegria da descoberta ou da produção opera como freio; mas as horas ingratas não se fazem esperar e, enquanto dura, é poderosa a tentação. Todos os trabalhadores se queixam dos instantes de depressão que cortam as horas ardentes e ameaçam arruinar as economias. Quando o tédio se prolonga, apetece mais plantar couves do que prosseguir um estudo fatigante; tem-se inveja do trabalhador manual mas este por sua vez apoda-vos de «poltrão», por estardes muito tranquilo numa poltrona.
É sobretudo nas voltas do caminho que devemos precatar-nos contra o imprevisto e a perfídia dos ataques.
Todos os trabalhos têm transições custosas; os encaixes são a grande dificuldade dos estudos e das criações. Tudo está ligado. A uma arrancada em linha reta sucede uma
curva de ângulo difícil de medir; perde-se a direção; hesita-se e, nessa altura, surge o demónio da preguiça.
Às vezes é bom diferir, quando se não enxerga a sequência dos acontecimentos e se está exposto ao grave perigo das transições artificiais. Pode suceder que um pouco mais tarde tudo se ilumina sem esforço. Já mostrei o valor das horas da madrugada, da noite e dos momentos de repouso. Mas diferir não é preguiçar. Tomai o trabalho pela outra extremidade e aplicai-vos a ele com redobrada aplicação.
Recusai energicamente qualquer passagem injustificada. Se vos sentirdes muito cansados, interrompei voluntariamente o trabalho para depois o retornar com novo afinco. O enervamento seria contraproducente. Uns momentos de leitura dum autor favorito, uma recitação em voz alta, uma oração feita de joelhos para modificar o estado orgânico e para libertar o espírito, uns momentos de respiração ao ar livre, alguns movimentos rítmicos: eis
os remédios possíveis. Após o quê, voltai à carga.
Há quem recorra aos excitantes: é método nefasto.
O efeito é apenas momentâneo; de dia para dia torna-se necessário aumentar a dose de excitante, até que aparecem as taras físicas e mentais.
Um excitante anódino é a marcha ao ar livre ou no gabinete de estudo. Muitos são os trabalhadores intelectuais que deste modo refazem o cérebro pelo exercício muscular. «Os meus pés também escrevem», dizia Nietzsche.
Mas o excitante mais normal é a coragem. A coragem mantém-se não só pela oração, mas também pela visão renovada do fim em vista. O prisioneiro que quer fugir do cárcere, lança mão de todos os recursos, sem descoroçoar: não se cansa das preparações longínquas, de recomeçar após um fracasso: é que a liberdade chama por ele. E vós, não tendes de vos libertar do erro, de conquistar a liberdade do espírito numa obra feita? Reparai no trabalho concluído: é uma aparição que vos infundirá coragem.
A constância vence ainda as impressões de falso cansaço que se apoderam do espírito e do corpo. Quem faz alpinismo sente-se muito frequentemente esbaforido e pesado ao fim de algum tempo; o busto curva-se para diante; de bom grado arrepiaria caminho. Ora persisti: as articulações desenferrujam-se, os músculos treinam-se, a respiração dilata-se e começa-se a experimentar a alegria da ação. O mesmo acontece com o estudo. Longe de ceder à primeira impressão de fadiga, rompei para a frente, forçai a energia interior a sair. Pouco a pouco as rodas entram a funcionar, adaptamo-nos, e à inércia dolorosa pode suceder um período de entusiasmo.
Transponde as dificuldades sem desanimar e sem perder o domínio do vosso ser. A sessão de trabalho assemelha-se a terreno de corridas cortado de obstáculos.
Salta-se uma sebe, um pouco mais longe aparece um fosso, depois um talude, e assim por diante. Chegados à primeira barreira, não nos detemos, saltamos, certos de que entre os obstáculos se estendem zonas planas por onde se corre sem embaraço. Uma dificuldade vencida ensina, a vencer outras dificuldades; um esforço poupará outros esforços: a coragem dum minuto vale tanto como um dia, e o trabalho duro tanto como o trabalho fecundo e alegre.
No conjunto da vida, este afinco concorre para facilitar mais e mais a atividade. Habituamo-nos a pensar como nos habituamos a tocar piano, a andar a cavalo e a pintar. O espírito toma o vinco daquilo que se lhe pede frequentemente. Ainda mesmo na hipótese de serdes
destituído de memória, alcançá-la-eis para o objeto das vossas predileções: se sois atreito à dispersão de espírito, caber-vos-á em herança a atenção do profissional; se fordes pouco apto para discriminar ideias, o contacto perseverante com os génios tomará o vosso juízo mais agudo e mais seguro. Em qualquer assunto, depois de ter arrancado um certo número de vezes, o vosso motor aquece e o carro devorará quilómetros.
Pergunta Amiel no seu Diário: «Por que és fraco?
- Porque cedeste dez mil vezes, convertendo-te em joguete das circunstâncias. Foste tu que as fizestes fortes, não elas que te fizeram fraco».
Aprendei a ser constantes pela aplicação e porfia em recomeçar: dia virá em que se dissiparão os langores persistentes, e em que os tédios momentâneos não surtirão efeito. Sereis então um homem. O trabalhador sem constância não passa de criança.
Mostra a experiência que quem se lança energicamente ao trabalho triunfa das dificuldades, como o corredor que se atira à corrida. Todavia sempre restará lote
considerável de obstáculos para exercitar uma virtude vizinha: a paciência.
Os génios queixaram-se sempre das tribulações do pensamento, declarando que seus trabalhos, não obstante serem para eles uma necessidade e ocasião de felicidade, lhes infligiam longos tormentos, por vezes autênticas angústias.
O cérebro rege-se por leis obscuras, que pouco ou nada dependem da vontade. Quando se recusa a funcionar, que fazer? Quando os fios da ciência se emaranham uns aos outros e as horas passam em vão, quando um doloroso sentimento de impotência se apossa de vós, sem que nada anuncie para breve o termo da provação, que fazer e que socorro invocar além do socorro divino?
Os leitores acharão muito naturais os vossos êxitos, criticarão duramente os vossos desfalecimentos; não suspeitarão quanto trabalhastes. Nem é preciso. «As obras realizadas à custa de grande trabalho, dizia Miguel Ângelo, devem dar a impressão de terem sido fáceis de conceber e executar... A grande regra consiste em esforçar-se muito para criar coisas que parece não terem custado nada». Por sua vez, Boileau gabava-se de ter a-
prendido, em Racine, a arte de compor dificilmente versos fáceis. Em matéria de ciência, dizia Biot: «Nada é tão simples como o que se descobriu ontem, nem tão difícil como o que se há-de encontrar amanhã». São segredos que o público não suspeita. Carregareis a vossa carga sozinho, e os homens superiores avisam-vos que o pensamento é a mais pesada carga que o homem pode levar.
Deveis mostrar-vos tão indomável na investigação, como os exploradores do polo ou da África central. No ataque ao erro ou na resistência, precisais da paciência de César ou de Wellington. O trabalho é batalha: requer heroísmo. Muitas vezes, o quarto de estudo é trincheira onde cumpre estar a pé como um mártir.
Quando vos sentirdes desarmados, vencidos; quando o caminho se estende diante de vós, interminável, ou quando, depois de ter encarreirado por falsa direção, tendes a impressão de estar perdidos, afogados em espessas brumas, desorientados, nesse momento apelai para as energias de reserva. Persisti, aparai o golpe, tende paciência. Custa menos o ardor do que a paciência, mas ambos são precisos, e o êxito é a comum recompensa de ambos.
O alpinista, que atravessa uma nuvem, pensa que o universo está mergulhado em trevas: continua a subir até encontrar para além da nuvem a luz do sol. Quando, em tempo de borrasca, nos encontramos fechados num quarto, afigura-se-nos que se não pode andar fora de casa: saímos, damos uma voIta com todo o sossego, e o bom tempo retorna.
A arte de pensar é morosa a desproporcionada à nossa coragem habitual, porque é longa. É vasto campo onde a virtude da paciência se pode exercitar à vontade. Ganhareis mais, respeitando as leis de nascença das coisas e não ofendendo a ciência com pressas indiscretas, do que com precipitação e arrebatamento. A verdade e a natureza seguem par e passo, e a natureza opera sobre durações, em comparação das quais a vida e a morte do globo são como o nascer e o pôr do sol.
«No fundo das nascentes tudo se passa com lentidão, escreve Nietzsche; necessitam de esperar muito tempo até saberem o que caiu lá dentro». A alma é esta fonte secreta: não lhe tenteis desvendar prematuramente o mistério. As reservas do tempo pertencem a Deus; pouco a pouco Ele no-las cede; não nos compete, porém, exigi-las, nem impacientar-nos.
Por conseguinte, evitai a trepidação do homem apressado. Devagar se vai ao longe. No domínio do espírito vale mais a calma do que a corrida. Aqui mais do que em qualquer outra parte se verifica o prolóquio: tudo se alcança com tempo e paciência. «A vida bem cheia é longa», disse Leonardo da Vinci. Ao homem que aproveita o seu tempo pertence a duração inteira, que está posta na eternidade. Não confundais o generoso estímulo com as excitações, que são quase o contrário dele, pois lhe quebram o ritmo. Não podeis levar a cabo, no meio da perturbação, o trabalho de paz que é a disposição ordenada das ideias, a delicada elaboração dos pensamentos novos. Portanto, não percais tempo, supondo loucamente que tendes falta dele.
Respeitai cristãmente a Providência de Deus. É Ele que põe as condições do saber: a impaciência é revolta contra Ele. Quando a febre se apossa de vós, desvanece-se a liberdade interior e espreita-vos a escravidão espiritual. Já não sois vós que operais, nem Cristo em vós, já não realizais a obra do Verbo.
Para que apressar-se indiscretamente, se o caminho é termo e o meio fim? Quando olhamos para o Niágara, desejamos acaso que ele se apresse? A intelectualidade tem valor intrínseco em todos os seus estados. O esforço virtuoso é conquista. Quem trabalha por Deus e como Deus quer, encontra em Deus a sua morada. Que importa o andar do tempo, se estamos instalados em Deus?
A perseverança coroa a constância e a paciência.
Quem perseverar até ao fim, será salvo, diz o Evangelho.
A lei da salvação intelectual é a mesma que a da salvação total. Quem põe mãos ao arado e olha para trás não é digno, também aqui, do reino dos céus.
Quantos trabalhadores que deste modo abandonaram os trabalhos, as sementeiras, e renunciaram as colheitas! As primeiras tentativas na ciência têm o carácter de provas eliminatórias: sucessivamente, os caracteres fracos cedem; os fortes resistem: no final, encontram-se apenas os trezentos de Gedeão ou os trinta de David.
Perseverar é querer; quem não persevera, não quer, projeta. Quem larga, nunca segurou; quem cessa de amar, nunca amou. O destino é um só, e com muito maior razão uma obra parcial. O verdadeiro intelectual é, por definição, perseverante. Assume a tarefa de aprender e de instruir; ama a verdade com toda a alma; é um consagrado: não se subtrai prematuramente.
As grandes vidas mostram este supremo distintivo.
Terminaram elas como um dia glorioso. A vermelhidão do pôr do sol não é menos bela que a poalha loura da madrugada; até mais imponente. O homem de bem, que trabalhou longamente sem desfalecer, pode, também ele, finar-se numa morte simples e sumptuosa; a sua obra a um tempo segue-o e fica para nosso proveito.
Vós, que seguis os vestígios dos grandes homens, não queirais pertencer ao número dos viajantes cobardes que desertam, que andam parte do caminho, mas logo param, sentam-se esgotados e cedo ou tarde voltam às regiões da vulgaridade. Resisti até ao termo da viagem.
«Devagar se vai ao longe», e as largas passadas sem perseverança são saltos perdidos que a nenhuma parte conduzem.
Robustecei a vontade e confiai-a ao Senhor para que Ele a consagre. Querer é estar sujeito, é estar agrilhoado.
A necessidade do dever ou duma resolução refletida, embora livre de obrigação, deve constranger-nos tanto como as necessidades da natureza. Um laço moral é superior a um laço material.
Determinada a tarefa, perseverai nela com rigor maleável: excluí os deveres inferiores, mais ainda as infidelidades. Esforçai-vos em profundidade, a fim de conquistar a duração naquela das suas dimensões que vos é diretamente acessível. Envolvido na sua onda, não
abandoneis, que ela não vos largará. Pertencereis então ao número dos pensadores fiéis. Os gigantes do trabalho, os Aristóteles, os Agostinhos, os Albertos Magnos, os Tomás de Aquino, os Leibniz, os Littré, os Pasteur, reconhecer-vos-ão por filhos, e partireis dignamente ao encontro d'Aquele que pacientemente vos espera.
Texto da Obra: "A Vida Intelectual" de A. D. Sertillanges
O texto transcrito aborda o trabalho intelectual, onde não pode faltar essas três virtudes, porém, ajuda-nos a perceber um pouco mais sobre como atuam cada uma delas.
Essas mesmas importantíssimas virtudes são necessárias para que nós possamos viver uma vida mais coerente à Vontade de Deus e nos tornarmos mais espirituais e santos.
Aprofundemo-nos no que de melhor nos proporciona uma leitura piedosa que nos transforma a alma e dá-nos ânimo à seguir mais virtuosamente a nossa vida cristã.
Finalização de Claudia Pimentel dos Conteúdos Católicos
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