Examinemos primeiramente a graça em seu aspeto menos nobre. Mesmo assim, opinam os teólogos: é ela infinitamente superior a todas as coisas naturais.
Diz S. Agostinho: "Segundo as palavras do Salvador, céus e terra passarão; permanecerão, porém, a salvação e a justiça dos eleitos, pois contêm os primeiros as obras de Deus, e os segundos a própria imagem de Deus". Ensina S. Tomás: "ser coisa mais grandiosa a volta do pecador à graça do que a criação do céu e da terra. É que esta última obra termina-se em criaturas contingentes, ao passo que a graça nos leva a participar da natureza imutável de Deus. Quando criou Deus as coisas visíveis, construía uma morada para Si; quando dá ao homem uma natureza espiritual, povoa de servos Sua mansão; quando lhe confere, porém, a graça, adota-o em Seu seio, fá-lo filho Seu, comunica-lhe Sua vida eterna".
Em uma palavra, é graça um bem sobrenatural, isto é, um bem que natureza alguma criada pode possuir por si, ou sequer exigir, pois em si pertence ela unicamente natureza divina. Tanto é assim que sustenta a maioria dos teólogos ser Deus, apesar de Sua onipotência, incapaz de criar um ente ao qual, por Sua própria natureza, corresponda à graça; chegam mesmo a afirmar que se tal criatura realmente houvesse, não se distinguiria de Deus.
A isto acresce o que com tanta clareza e frequência tem ensinado a igreja: nenhum homem, nenhuma criatura traz em si o germe da graça. Como tantas vezes o notou S. Agostinho: "a natureza relaciona-se com a graça, como a matéria inanimada com o principio vital. A matéria, como morta que é em si, não pode dar vida a si mesma, mas deve recebê-la de outro corpo vivo."
Do mesmo modo, a criatura racional, de si, não possui a graça, nem pode adquiri-la por sua atividade ou por seus méritos. Somente Deus, em Sua bondade, pode concedê-la, na glória de Seu poder, envolvendo a natureza em Sua virtude divina.
Qual não será grandeza deste bem que tão superiormente sobrepuja a natureza e até o poder e os méritos dos próprios anjos?
Um piedoso e instruído escritor afirmou que todas as coisas visíveis se acham infinitamente abaixo do homem. Observou S. João Crisóstomo que coisa alguma no mundo é comparável ao homem. Acrescenta S. Agostinho: "preferir ser justo e santo a ser homem ou anjo"; e S. Tomás ajunta que tem a graça mais valor que a alma.
A graça supera a todas as coisas criadas, como o próprio Deus, visto não ser outra coisa senão a luz sobrenatural que das profundezas da divindade se derrama sobre a criatura racional. Sol e luz são inseparáveis. Se é o sol muito mais precioso e perfeito que a terra, escura em si, do mesmo modo sê-lo-á também a sua luz. O mesmo se dá com a graça. E nossa natureza a terra, recebendo os raios do sol divino, que a penetram e glorificam, para se converter, assim, numa espécie de natureza divina. Deus, a quem possuímos pela graça, não encerra apenas as perfeições de todas as coisas; é infinitamente mais perfeito que todas juntas. Do mesmo modo, é a graça mais preciosa que todos os bens criados. Dela pode dizer-se o que se falou da Sabedoria: "E superior aos mais preciosos tesouros; coisa alguma, por mais apetecível, pode a ela comparar-se".
Elevemos, pois, o nosso olhar para tais tesouros; vejamos se são eles dignos de desprezo, ou se merecem, ao contrário, busquemo-los com toda ardor de nosso coração. Ainda quando possuíssemos todos bens da natureza, ouro, prata, poder, fama, ciência, artes, todas estas riquezas se desvaneceriam diante da graça, como um montão de terra ao lado de uma pedra preciosa. E pelo contrário, embora pobres de tudo, a graça de Deus nos faz, por si só, mais ricos que todos os reis deste mundo; possuímos o melhor que Deus nos pode dar.
Canta o Salmista: "A misericórdia de Deus estende-se a todas as criaturas". E reza a igreja em sua oração: "O Deus, que manifestaste teu poder, especialmente ao perdoar-nos e ao usar de Tua misericórdia".
Sejamos reconhecidos a Deus por semelhante dom! Agradeçamo-Lo por nos ter tirado do nada. Assim canta o Salmista: "Todas as coisas, colocaste-as sob nossos pés, ovelhas e bois, aves do céu e peixes do mar". É o momento de com ele exclamarmos: Quem é o homem, para que dele te lembres, e ao filho do homem, para que o visites? Quanto mais não deveremos agradecer então os tesouros sobrenaturais da graça e guardá-los com o maior cuidado!
E é esta a razão de afirmar um sábio teólogo, o Cardeal Caetano: "não devermos perder de vista os castigos reservados aos que desprezam a graça. Será nosso castigo semelhante aos daqueles homens do Evangelho, que, convidados pelo rei ao seu banquete, preferiram o próprio interesse ou seu prazer. Do mesmo modo, desatentos e ingratos, desprezamos o convite ao banquete de Deus, para acedermos logo ao convite do mundo e do demónio, que com seus vis prazeres nos ofuscam o olhar. Dá-nos o demônio coisas infinitamente inferiores às de Deus; e assim procede, não para fazer-nos felizes e, sim, para perder-nos. Apresenta-nos Deus, generosamente e por amor, uma pérola de valor incalculável, enquanto nos fornece o demônio, avaramente e por ódio, resplandecente mas vil moeda. Cumpre ser louco para abandonar a pedra preciosa e comprar esta moeda falsa que nos arruína".
A inconcebível distância que medeia entre a graça e os bens da natureza, não somente deve impedir-nos de perder aquela pelo pecado mortal, mas ainda há de incitar-nos a praticar com empenho as virtudes que aumentam a graça em nós. Concedo que não percas a graça como deixar a missa, negligentemente durante a semana, como omitir uma oração não obrigatória ou uma obra de misericórdia, de mortificação, de humildade; não podes, entretanto, negar ser uma incalculável perda não aumentar teu capital, quando tão facilmente poderias fazê-lo, já que o menor grau de graça excede em valor a todos os bens deste mundo.
Se a um avarento fora dado ganhar, com um jejum ou uma oração, toda uma frota carregada de tesouros da India, quem seria capaz de impedir-lhe tais práticas? Julgais que o deteriam reflexões sobre o sacrifício de seu ato ou o perigo a que exporia sua saúde? Com que direito nos apoiamos, então, em semelhantes motivos, em se tratando de uma recompensa, cuja menor parte supera infinitamente a todos os tesouros da India, a todos os mundos juntos? Apesar de tudo, como somos tardos em estender a mão, em impor-nos o incômodo de trabalhar um campo que produziria, em seguida, espigas de ouro! Bastaria um suspiro, uma lágrima, uma boa resolução, um piedoso desejo, uma simples invocação ao Senhor, um gesto de amor, uma súplica.
Quem nos dera imprimir bem profundamente em nosso coração as maravilhas da graça, e repetir com profunda e viva convicção estas palavras de um piedoso doutor: "A graça é a soberana e a rainha da natureza".
M.J. Scheeben em sua Obra: "As Maravilhas da Graça Divina" de 1952
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